Na passada quarta-feira, vi serem atacadas duas das coisas que mais valorizo na vida: a liberdade e a nação que me viu nascer. Apesar de o ataque ter sido em Paris, o berço da Revolução, este não foi apenas dirigido à minha França mas sim a todos os países onde a liberdade é um direito adquirido e inquestionável, seja de expressão, de opinião ou de escolha. Foi um ataque a todos nós e a tudo o que o ser-humano teve de lutar para chegar ao que é hoje. A Revolução Francesa aconteceu há quase trezentos anos mas poderia muito bem voltar a acontecer hoje, neste instante, por ainda haver quem tente que os valores pelos quais ela se regeu não proliferem: A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade.
Vivemos num mundo cada vez menos tolerante, em que a crítica de qualquer espécie não tem lugar naquilo que o ego de cada um considera aceitável. E o humor, como todos sabemos, vive muito também da crítica e da sátira. Há quem goste e quem não seja o maior admirador e como tal, como seres-humanos e cidadãos livres que somos (ou deveríamos ser), temos as opções de apreciar ou ignorar, podendo sempre manifestar a nossa opinião em ambos os casos. É assim desde sempre e só desta forma conseguimos evoluir. No entanto, há aqueles que não apoiam a evolução e decidem escolher uma terceira opção: a de tentar calar os outros. Os regimes fascistas optam pela censura e os estados terroristas/religiosos optam antes pelo recurso a armas e a violência, chacinando por ano milhares e milhares de pessoas em prol de uma entidade divina cuja existência desconhecem e à qual julgam agradar com sacrifícios humanos. Não aceitam a crítica àquilo em que acreditam e não têm sentido de humor quando são eles os visados pela sátira. Todos temos o direito de não gostar de algo e somos livres de o manifestar, desde que isso não afecte de maneira nenhuma o próximo. No caso desta "gente", o próximo não interessa e o ego, o tão importante ego, é o que é preciso manter intacto, mate-se quem se tiver de matar. Sendo eu uma pessoa assumidamente agnóstica, as minhas perguntas são: Será que Deus ou Buda ou Alá ou o Profeta Maomé, ou qualquer outra entidade máxima de uma religião, gostariam realmente de assistir a estes episódios sangrentos em seu nome? É isso que os livros sagrados atestam, "mata o próximo que ataque, de qualquer forma, o teu deus"? Que estatuto tão especial e intocável tem a religião, pela qual já se lutaram e continuam a lutar tantas guerras? Quem é que nos concede o direito máximo de tirar deliberadamente uma vida, com o único propósito de a eliminar da equação (que tem de ter o resultado que nós queremos) e quem é que é responsável por traçar os limites da nossa liberdade? Porque sim, e reitero-o, isto não passou de um ataque à liberdade nas suas mais variadas formas. É por isso que eu sou e sempre serei Charlie. Porque, acima de tudo, valorizo a liberdade com que nasci e, tal como todas as vítimas daquela redacção, gosto de poder dar-lhe uso e prefiro mil vezes morrer de pé do que ajoelhada e rendida àqueles que ma tentem tirar.
Citando Bernardo Erlich, o mundo tornou-se tão sério que o humor é uma profissão de risco. Tentando encontrar um lado engraçado em tudo isto, se é que tal é possível, o Mundo, outrora tão dividido, uniu-se como nunca e Paris, a capital francesa, tornou-se também no coração de uma guerra que, apesar de quase invisível, apenas se encontra no seu início. Podem ter tentado destruir aquele jornal mas apenas lhe concederam o estatuto de intocável; mataram os cartoonistas mas não fizeram mais do que tornar os seus nomes imortais. Hoje, graças àqueles energúmenos que, munidos de armas letais, desataram a disparar sem dó nem piadade, todos sabemos o que é o Charlie Hebdo e quem foram Cabu, Wolinsky, Tignous, Charb e Honoré. Hoje, como uma só força, todos lutamos pela Liberdade. E que nenhuma de todas estas mortes tenha sido em vão.